Luis Martin Santos (1976) escreve sobre a relação entre epistemologia, filosofia e materialismo histórico ao apresentar o que chama de “nova epistemologia”. Em seu livro aparece a denuncia de que as epistemologias anteriores tem a tendência de se apresentar como livres enquanto seriam de fato epistemologias que justificam interesses burgueses.
Para Santos (1976) esta nova epistemologia não pode se limitar a análise da estrutura interna do pensamento considerada em si mesma ou produzida a priori, e sim deve se focar na clarificação das mediações que se estabelecem entre pensamento e objeto de estudo, mediações, portanto tanto interiores quanto exteriores. Não será assim uma epistemologia que possua conteúdo próprio, sendo sua missão o estudo dos atos e mediações no encontro entre pensamento e objetos, levando em consideração que essas mediações são construídas e acompanham a evolução histórica da humanidade, sociedade e dos modos de produção (SANTOS, 1976).
Esta proposta de uma nova epistemologia nega a possibilidade de que o discurso científico tenha uma virtude intrínseca de poder se enunciar em si mesmo sem sair dos princípios de sua própria teoria, não admite, portanto a possibilidade de um discurso científico soberanamente autônomo (SANTOS, 1976).
O processo de mediação é considerado por Santos (1976) o aspecto central dessa nova epistemologia que propõe, e aponta alguns dos principais aspectos envolvidos na mediação: o sujeito epistêmico; os mediadores: a percepção, a abstração, a intuição e a variação; aspectos da mediação, como: diairesis e totalização além de apresentar diferenças entre as formas dialéticas e fenomenológicas de visão dobre as mediações.
Sobre o sujeito epistêmico: traz a discussão do conhecimento a priori e de como esta noção de sujeito encobre um ideal burguês de homem, que justifica por si só as produções científicas deste sujeito. A nova epistemologia proposta por Santos (1976) considera o sujeito epistêmico como aquele capaz de conhecer pela interação dialética com a realidade, sendo portanto localizado historicamente, e que comunica este conhecimento, atribuindo assim importância também à construção coletiva do conhecimento. Interessante a analogia que traz Santos (1976) nessa passagem de seu texto quando aponta o valor de uso e de troca do conhecimento, sendo o valor de uso aquele em que o próprio sujeito utiliza em sua vida o conhecimento que possui, e o de troca, relacionado à possibilidade de transferência e comunicação do conhecimento entre as pessoas, lembrando que assim como a total coincidência entre realidade e pensamento da realidade é impossível, pois este não a apreende em sua totalidade, mas a partir de mediações, também a comunicação e a transferência do conhecimento pensado como valor de troca não é igual ao que está no pensamento do sujeito como valor de uso, o pensamento enquanto valor de troca também produz mais valia, um valor que sobra, se modo que não é exatamente igual ao que está no indivíduo, pois este está embebido também em sua subjetividade (SANTOS, 1976).
As mediações são entendidas nesta nova epistemologia conforme Santos (1976) como fundamentais do processo de conhecimento de forma que nega o dualismo entre pensamento e objeto, afirmando que é a partir das mediações que se pode conhecer os objetos, sendo que a representação da coisa nunca corresponderá à totalidade da coisa concreta em si, aspectos como a percepção, abstração, intuição e variação são debatidos:
Sobre percepção: é entendida como o ponto de partida do conhecimento, debate-se que na nova epistemologia a percepção não é passiva, isto é, não se acredita na possibilidade de o objeto apresentar-se por si próprio à percepção, sendo aqui, portanto entendida como uma percepção ativa, em que sujeito epistêmico e objeto conversam, interagem por mediações, para então ser percebido pelo sujeito. Santos (1976) cita, por exemplo, mediações de modelos e nominalistas, em que novas percepções serão já influenciadas por modelos pre-existentes em nosso conhecimento, bem como pelo próprio nome que já foi atribuído às coisas. O ponto principal sobre a percepção parece ser, portanto, o de que em uma epistemologia crítica não se pode considerar que nem mesmo a percepção é neutra ou pura, sendo que na interação dialética entre sujeito e objeto a percepção já será influenciada pela subjetividade do sujeito e pela construção social e histórica que já se fez coletivamente sobre aquele objeto.
Sobre abstração: ressalta-se que se trata da produção de conceitos sobre as coisas em nível pessoal, isto é, a transformação pelo pensamento do real concreto em real pensado por meio da interação dialética e mediada entre sujeito e objeto. A subjetividade aqui exerce novamente importante papel, uma vez que a abstração será feita a partir dos esquemas de pensamento e conhecimento do próprio indivíduo através de um processo de aproximação de semelhanças e categorizações entre conceitos.
Sobre intuição: Santos (1976) retoma a discussão sobre conhecimento a priori e a posteriori desde uma visão platônica a respeito do conhecimento que poderia provir de uma intuição metafísica da verdade proveniente do mundo das ideias, da visão kantiana sobre intuição, que segue esta versão idealista fundada em Platão, e até mesmo uma visão popperiana em que a intuição é tida como algo inato, que se afasta desta lógica metafísica, mas que permanece numa lógica idealista em que alguns conhecimentos seriam provenientes dos sentidos, por exemplo, pela genética. A visão do conhecimento a posteriori, que é a visão materialista, em que conhecimento necessariamente provém do contato com a realidade concreta, a intuição também é possível de ser considerada na relação mediada e dialética com o objeto, mas seria neste caso uma intuição mais relacionada a uma sensação não consciente, não racional, de um processamento pela memória de informações previamente adquiridas que permitem insights não conscientes sobre coisas e relações.
Sobre a variação: Santos (1976) aponta a necessidade de variação de pontos de vista, ou contextos científicos, para a compreensão mais completa o possível da realidade concreta, para atingir-se o eidos (essência fundamental), aqui o autor ressalta que na nova epistemologia que está propondo, este eidos não é entendido na perspectiva platônica, de essência proveniente de uma verdade idealizada, nem tampouco representa a imagem, a representação mais pura possível do objeto que se investiga, sendo entendido como uma visão tensional entre conceito do objeto e do objeto em si, visualizado da forma mais interdisciplinar o possível, para aproximar-se de sua totalidade e de sua essência fundamental.
Interessante ressaltar que Santos (1976) também frisa que a variação não provém somente da utilização de visões de diferentes pontos de vista ou de diferentes disciplinas, mas também das diferentes visões a cerca de um mesmo fenômeno ao longo do tempo, numa perspectiva histórica. O autor entende que as diferentes posições básicas que foram produzidas historicamente não passam de momentos de variação coletiva em relação a um mesmo fenômeno (SANTOS, 1976, p. 39), deixando claro aqui que esta variação se trata de um conceito coletivo e sistemático, que pode continuar e tem continuado ao longo da história.
Por sua vez, Dominique Lecourt (1980), também escreve uma nova epistemologia, que denomina de epistemologia crítica. Escreve principalmente sobre a contribuição de 3 autores autores precursores de uma epistemologia crítica em seu livro “Para uma crítica da epistemologia”: Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Michel Foucault. Afirma que a escolha da obra destes três autores para realizar uma crítica sobre a epistemologia não se dá por formarem uma escola de pensamento organizada, e sim por compartilharem em seu pensamento características em comum: a oposição e a denúncia ao positivismo e antievolucionista.
De forma bastante resumida, uma vez que voltarem os a trabalhar especificamente estes autores em aulas futuras, descrevem-se a seguir somente as principais contribuições de cada um destes 3 autores para a construção de uma epistemologia crítica conforme Lecourt (1980).
Gaston Bachelard, conforme Lecourt (1980) apresenta uma leitura materialista da obra de Bachelard que não era marxista, nem mesmo materialista, sua epistemologia se pretendia como idealista. Bachelard propõe uma categoria filosófica inédita, de função descritiva e normativa, a do “não” (Filosofia do Não, exemplo da mecânica não-newtoniana), defende a historicidade da epistemologia e a relatividade dos fenômenos, traz ainda o conceito de ruptura, em que defende que o conhecimento evolui historicamente pela negação das teorias anteriormente estabelecidas, por meio de retificações, correções, num processo dialético de análise e correção de erros conceituais e teóricos anteriormente aceitos.
Além disso, sobre Bacherlard, ressalta-se que este estabeleceu, conforme Santos (1976), uma psicanálise da razão, propondo que é possível identificar quase todos os mecanismos de defesa do ego nas ideologias que embasas as ciências, como a racionalização, a negação e a justificação, esta psicanálise procura desmistificar as ideologias que encobrem as ciências disfarçando os interesses que estas representam.
Lecourt (1980) considera que uma das principais contribuições de Bachelard foi defender que existe uma:
“articulação de cada prática científica e das ideologias que intervêm sob a capa filosófica. Conferia-lhe, simultaneamente, uma dupla função, indissociavelmente polemica e histórica : polémica, porque o desenredo do filosófico e do não-filosófico é uma luta -luta duma filosofia contra uma outra, luta de libertação contra o imperialismo da filosofia dos filósofos; histórica, porque este desenredo não se percebe sem uma referência à história interna da disciplina em questão e das ideologias que a cercam do interior” (LECOURT, 1980, p. 58).
George Canguilhem, assim como Bachelard, defende a historicidade do objeto, inaugura uma história das ciências, critica, por exemplo a ideia de pensadores precursores, pois esta traz encoberta uma lógica de que existiriam diversos inícios de diversas teorias, sendo que para Canguilhem, se trataria sempre da mesma história, portanto o mesmo caminho, critica nesse sentido também a visão de autonomia entre as diferentes ciências, ou disciplinas, entendendo que essa fragmentação também é uma maneira ilusória de se entender fenômenos de forma neutra e autônoma, que encobrem ideologias. Para o autor, portanto o foco da epistemologia no âmbito da história d ciência deveria ser o de entender como conceitos, teorias, e tecnologias surgem e em torno de quais problemas se centram, para entender os interesses e valores que as perpassam ao longo de seu desenvolvimento histórico.
Finalmente, em relação a Michel Foucault, Lecourt (1980) destaca para trabalhar sua contribuição à construção de uma epistemologia crítica seu livro “a arqueologia do saber” em que rompe com a tradição estruturalista que vinha seguindo nas obras anteriores, com a busca de regras e normas gerais de explicação dos fenômenos. Conforme Lecourt (1980) uma das principais contribuições de Foucault foi o desenvolvimento do conceito de acontecimentos discursivos, em que fica estabelecido um regime de materialidade para o discurso, uma vez que deve ter acontecido de alguma forma, portanto concretizou-se, materializou-se em algum momento – “é indispensável que um enunciado tenha uma substância, um suporte, um local e uma data” (LECOURT, 1980, p. 90) – elaborando assim uma categoria materialista de discurso, e a partir disso pensar a história materializada deste discurso. Conforme Lecour (1980), os enunciados encontram-se, portanto inseridos em contextos materiais, cujo regime de materialidade pertence mais às instituições, sendo impossível admitir qualquer discurso fora do sistema de relações materiais que o estrutura e o constitui. Dentro desta lógica, Foucault, conforme Lecourt (1980), estabelece a noção de saber como aquilo que sobre o que se pode falar dentro de uma prática discursiva, entendendo o saber, portanto, como o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados onde os conceitos aparecem, se definem, aplicam e transformam (p. 92), sendo que a ciência (as ciências) se colocam como campos determinados de saber, que portanto limitam e condicionam os enunciados que podem ser construídos dentro de seu campo, sendo assim o próprio saber uma ideologia. Foucault (ainda conforme Lecourt, 1980), diferencia entre ideologias teóricas e práticas, sendo as teóricas as ideologias constituídas por saberes dentro de práticas discursivas como as ciências, e as práticas os saberes sistematizados (e explícitos), que guiam e são usados como justificativa para a ação humana. Para Foucault, as ideologias teóricas estariam submetidas às ideologias práticas. Lecourt (1980) escreve que, embora Foucault não tenha admitido, esta subsunção das ideologias teóricas às ideologias práticas, e as relações destas com a superestrutura e desta ultima com a infraestrutura econômica, isto é, com as formas de produção das condições de subsistência humana seria uma grande contribuição para o desenvolvimento de uma epistemologia crítica nos moldes do materialismo histórico dialético.
*Material produzido sob orientação do Prof. Dr. José Henrique de Faria, como parte dos requisitos necessários da disciplina de Epistemologia do Doutorado em Administração – UFPR, 2014.
Referencias:
LECOURT, Dominique. Para uma crítica da epistemologia. 2ª. Ed. Lisboa: Assirio Alvim, 1980.
SANTOS, Luis Martín. Una epistemología para el marxismo. Madrid: Akal Editor, 1976.
Anotações realizadas a partir da aula ministrada pelo Prof. Dr. José Henrique de Faria em que o tema foi discutido:
- Influência do positivismo no marxismo é muito grande, não se pode, portanto dizer que o materialismo histórico dialético é uma epistemologia independente. É autônoma como todas as outras epistemologias são autônomas, mas não é independente, como nenhuma outra epistemologia é independente, todas sofrem influencias das demais.
- Perigo da glorificação do Marx e do marxisismo como ciência, a prática do marxismo é o materialismo histórico, é necessário cuidar do marxismo dos seguidores de Marx, porque alguns não seguem nem mesmo a lógica do materialismo histórico. Professor cita a existência do Marxianismo, se queria a epistemologia do próprio Marx, e nesse caso não se trata de uma ciência e sim de uma filosofia da prática, cujo a epistemologia é o materialismo histórico (prática científica em cima dessa epistemologia), sendo o método o dialético.
- Outros debates e discussões realizadas em sala aula foram incorporados ao texto da resenha.