Kosik (1976) escreve sobre a dialética da totalidade concreta, perpassando o conceito de economia e práxis para debater sobre a epistemologia do materialismo histórico dialético. Seu livro encontra-se estruturado em quatro grandes partes: 1. Dialética e totalidade concreta; 2. Economia e filosofia; 3. Filosofia e economia; e 4. Praxis e totalidade.
Na primeira parte debate-se sobre a dialética do concreto e são apresentados conceitos tais como: o mundo da pseudocreticidade como o mundo fenomênico que, se entendido somente desta maneira, seria uma realidade incompleta, fetichizada, como um mundo de totalidade hipostasiada, de falsa totalidade. Escreve Kosik (1976) sobre representações e conceitos do mundo como dois aspectos da práxis humana, defendendo a necessidade de se compreender aparência e estrutura como aspectos que compõe a unidade dos fenômenos, sendo necessária a destruição da pseudoconcreticidade para a liberdade dos sujeitos.
Na sequencia o autor discute sobre a práxis como forma de apropriação prático-espiritual do mundo pelo homem, e a abstração como forma dialética de apropriação do concreto pela via do pensamento. Entendendo que os fenômenos se constituem historicamente e estão em constante movimento, defende que a abstração deve focar-se na tentativa de compreensão do movimento entre substância e aparência dos fenômenos. Como a totalidade dos fenômenos não é imediatamente cognoscível para o homem, conforme Kisik (1976) é necessário para apropriar-se dela realizar um detour, em um movimento em que o pensamento se apropria do real pela abstração em um movimento que retorna para o concreto (da parte para o todo e do todo para a parte).
Kosik (1976) escreve que a dialética não é o método da redução, como na fenomenologia, e sim um método de reprodução espiritual e intelectual da realidade. O autor reforça ainda que o método do dialético para a investigação é diferente do método de exposição do conceito.
Em uma passagem resume a ideia anteriormente exposta: “A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes” (KOSIK, 1976, p. 42), reforçando a ideia de complementariedade entre todo e partes, entre aparência e essência e de movimento dos fenômenos, deixando clara sua posição de compreensão da totalidade não como um todo já pronto de determina seu conteúdo ou partes, mas que, ao contrário, se constitui das partes ao passo que o inter-relacionamento entre elas o constitui, sendo estas relações nunca fixas. Reforça em passagem seguinte a ideia de relação dialética entre todo e partes: “a totalidade sem contradições é vazia e inerte, as contradições fora da totalidade são formais e arbitrárias” (KOSIK, 1976, p. 51), demarcando que essa é uma das características que separam as concepções estruturalistas e materialistas a cerca da totalidade.
A segunda e a terceira partes do livro debatem questões referentes à economia e à filosofia: incisa-se a segunda parte discutindo-se sobre a cotidianidade e a preocupação na vida humana, entendida a preocupação como modo primordial e elementar em que a economia existe para o homem (KOSIK, 1976, p. 59), sendo considerada a forma em que o homem se enreda no conjunto das relações em seu mundo prático- utilitário, é a atividade pura do indivíduo social isolado. Neste trecho Kosik (1976) reforça que o mundo na atividade prático-utilitário do indivíduo, da preocupação, se apresenta para ele como mundo objetivo, dado, determinado, que determina suas ações, mas que, ao contrário disso, é por meio da ação dos indivíduos no mundo (ação engajada – engagement) que o mundo social humano é construído e movimenta-se.
Uma crítica é apresentada aqui por Kosik (1976), o mundo da preocupação por ser entendido como mundo objetivo fixo faz com que os indivíduos percam a consciência de que este mundo é criação do homem, transformando a práxis humana em seu aspecto fenomênico alienado em que se inserem e se reagem a relações já determinadas e prontas, sem aperceber-se de que é a ação do homem nessas relações que as constituem e as mantém. A cotidianidade seria esse mundo objetificado, em que o ritmo regularmente organizado promoveria uma instintividade mecânica na ação do homem, um sentimento de familiaridade, de fixidez da realidade objetivada, tornando cada vez mais distante da percepção humana a noção de que tudo isso pode ser mudado, se destruída essa pseudoconcreticidade.
Na sequencia Kosik (1976) vai escrever que historicamente, com a evolução da visão do fator econômico como determinante da vida social, com a noção de economia enquanto sistema, o homem passou a ser entendido como parte deste sistema, e a visão de totalidade fixa e determinada do sistema fixou a noção de homem como parte integrante de uma engrenagem que deve funcionar de uma determinada maneira para que o sistema funcione “bem”, entendendo funcionar bem como funcionar de forma eficiente, e não um “bem” ou “bom” definido com bases morais e éticas, nem tampouco, construídos coletivamente.
Essa visão de homem como parte do sistema econômico demonstra uma mudança da concepção de homem como ser da preocupação para o homem econômico. Sobre isso Kosik escreve: “Nesta (mudança do ponto de vista) não se trata apenas do mero acesso metodológico à realidade; é que no acesso ideológico se modifica a realidade, ontologiza-se a metodologia. A economia vulgar é a ideologia do mundo objetual . Ela não investiga suas conexões e leis internas; sistematiza as representações que os agentes dêste mundo objetual, isto é, os homens reduzidos a objetos, têm de si próprios, do mundo e da economia. A economia clássica se move do mesmo modo na realidade objetual, mas não sistematiza as representações do mundo formuladas pelos agentes; ela procura as leis internas dêsse mundo reificado.” (KOSIK, 1976, p. 87).
Kosik (1976) escreve ainda que há uma confusão conceitual na leitura da obra de Marx pela qual o materialismo histórico dialético acaba sendo erroneamente julgado por aqueles que o criticam, a noção de economia como fator primordial de determinação das relações humanas. Kosik (1976) escreve que este erro está no entendimento de economia como fator econômico, ao passo que para Marx tratava-se das relações sociais estabelecidas na produção humana de sua subsistência material. Um entendimento mais amplo e complexo do que seria economia. Conforme o autor: “a dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, idéias correspondentes e todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e êle próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido” (KOSIK, 1976, p. 111).
Outra passagem de Kosik (1976) que é esclarecedora sobre concepção de economia para a teoria marxista pode é encontrada na pagina 172: “justamente porque a economia é a forma elementar da objetivação, é unidade objetivada e realizada de sujeito e objeto, é atividade prática objetivada do homem, justamente por isto em tal relação não se desenvolve apenas a riqueza social objetiva, mas ao mesmo tempo também as qualidades e faculdades subjetivas dos homens . No ato mesmo da reprodução não se modificam apenas as condições objetivas – por exemplo, uma vila toma-se uma cidade, um deserto toma-se terra cultivável; modificam-se os próprios produtores, enquanto extraem novas qualidades de si mesmos, desenvolvem-se na produção e se transformam, criam novas fôrças e novas representações, novos modos de relações, novas exigências e uma nova linguagem” (KOSIK, 1976, p. 172).
Na terceira parte de seu livro Kosik (1976) traz então a discussão sobre historicidade e historicismo, reforçando que a analise da totalidade concreta dentro uma perspectiva materialista histórica dialética deve levar em consideração o contexto histórico em que o fenômeno em questão surgiu, o que representava naquele contexto e o que representa daquele contexto, escreve exemplificando sobre as obras de arte, como fenômenos construídos a partir de um contexto, mas que sobrevivem a mudanças históricas deste contexto, se inserem em uma história, mas constroem a história extrapolando-a, são representação daquela época ao mesmo tempo que são essência que permanece e que pode ser interpretara e representada em outras épocas.
Discute nesta terceira parte também o conceito de trabalho em si, entendendo-o como um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade, trata-se trabalho como termo mediador entre o domínio do desejo animal bruto e a satisfação postergada, isto é, é pelo trabalho que se supera o nível da atividade instintiva, ultrapassa assim o animal, o que é dado pela natureza, portanto, inumano, e caracteriza atividade de fato humana.
Conforme o autor seria por meio do trabalho que o home se constitui como homem, por meio da organização temporal do trabalho que o homem passa a ter a noção subjetiva de tempo, e por consequência a noção de história. Além disso, pelo trabalho o homem deixa algo permanente que transcende a sua própria existência, e que independe da consciência individual, e essas criações objetivadas são pressupostos da história, que poderá ser interpretada e representada por gerações futuras, permitindo a continuação histórica da existência humana. Sobre isso escreve o autor: “se a primeira premissa fundamental da história é que ela é criada pelo homem, a segunda premissa igualmente fundamental é a necessidade de que nesta criação exista uma continuidade. A história só é possível quando o homem não começa sempre de novo e do princípio, mas se liga ao trabalho e aos resultados obtidos pelas gerações precedentes” (KOSIK, 1976, p.218)
Kosik (1976) neste ponto apresenta uma diferenciação entre este trabalho essencialmente humano e o emprego (trabalho para a subsistência), que parece aproximar-se dos conceitos de trabalho X labor propostos por Hanna Arendt.
Finalmente na quarta Kosik (1976) escreve sobre a práxis humana. Entende a práxis como grande conceito da moderna filosofia materialista, não como conceito filosófico, mas como principal categoria da teoria dialética da sociedade.
A concepção de prática aqui se contrapõe à logica de separação entre teoria e prática, pelo contrário, propõe práxis como condição do “homem como ser ontocriativo, como ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade) . A práxis do homem não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade (KOSIK, 1976, p. 202).
Neste trecho Kosik (1976) fala da possibilidade manipulativa da e na práxis humana, e que esta seria o foco da economia política, em que, a visão de homem, numa perspectiva maquiavélica, não importando se o homem é bom ou mau, importando sim que ele é manipulável, e pode, por incentivos, ser direcionado para um tipo de ação ou outro. Com isso defende que tanto a práxis como manipulação como a práxis como preocupação seriam formas fetichizadas da práxis humana.
Kosik (1976) conclui seu livro escrevendo sobre o homem e a liberdade, acentuando que a dialética do concreto trata sobre a coisa em si, que é unidade de aparência e essência em movimento, e que, embora possa existir de forma independente ao homem, só pode ser compreendido a partir da totalidade do mundo revelada pelo homem na história, homem esse que existe na totalidade do mundo.
*Material produzido sob orientação do Prof. Dr. José Henrique de Faria, como parte dos requisitos necessários da disciplina de Epistemologia do Doutorado em Administração – UFPR, 2014.
Referencia
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
Anotações realizadas a partir da aula ministrada pelo Prof. Dr. José Henrique de Faria em que o tema foi discutido:
- Totalidade do pensamento dialético materialista à realidade como um todo estruturado que não se apresenta em sua totalidade à primeira vista, sendo acessível ao primeiro olhar somente sua representação.
- O caráter ativo do conhecimento à deriva de uma atividade ativa, da práxis, jamais tem fim, na atuação sobre o real se conhece o real. O concreto somente se torna conhecido pela mediação do abstrato, quando há a passagem do real concreto para o real pensado, que é o real abstraído pelo sujeito.
- Fenômeno não é só representação externa, primeira, é a aparência do fenômeno em uma primeira aproximação, sendo para o materialismo dialético um método que defende que se vá para a essência desse fenômeno, porém, ao contrário do que faz a fenomenologia, sem esquecer-se, sem abandonar-se a forma como o fenômeno se apresenta.
- O sujeito só se apropria dos objetos, só toma consciência dele, quando consegue compreender de forma abstrata, mediada pelo pensamento, de maneira que aquilo que é exterior ao sujeito, passa a ser interno ao sujeito como objeto pensado. A abstração é a mediação que o pensamento faz entre sujeito e objeto por meio do conhecimento das relações, contradições, aparência e estrutura essencial dos objetos. Considera-se impossível conhecer o objeto total nesse nível abstrato, trata-se sempre de uma ideia do todo.
- Embora se preocupe também em descobrir a estrutura das coisas (sua essência) o materialismo histórico dialético se diferencia do estruturalismo porque diferente deste, ele não parte de uma estrutura de relações pre estabelecidas (um modelo), e sim partindo do fenômeno em si procura identificar sua estrutura, como as relações internas das contradições desse fenômeno se estruturam, sem entender esta estrutura como fixa, entendendo que esta estrutura se constrói e modifica no movimento, na história.
- Pseudoconcreticidade: é o concreto do empirismo, parece num primeiro momento que aquilo que é empírico é o concreto.
- A cotidianidade naturaliza as relações que estão aí como “assim mesmo” e tornam rígidas e imutáveis, transformam em situações dadas, relações que são construídas no dia a dia da práxis do homem.
- Problema da linguagem à é por meio da linguagem que o conceito vai, a ideologia vai, tem um papel importante, é por meio da linguagem que as representações do real são feitas. Pode ser falado ou não, mas ela sempre é simbolizada, esse símbolo diz algo explicitamente (aparência fenomênica) e diz algo implicitamente, por meio da linguagem na qual se expressa. (ver Foucault sobre isso).
- O real tem uma linguagem sobre o real, e como ela entra neste processo? Qual o papel da linguagem na expressão, na representação. (é preciso um símbolo que permita a representação – pensar nas perdas da tradução). A palavra consegue levar a uma abstração, como conceituar o real se somos limitados pela linguagem? Só podemos pensar pela linguagem.